Passarinhos cantavam nas copas das lixeiras, nos galhos das piúvas e aricás. O sol era escaldante como agora.

Agrupados, os senhores liam a ata de fundação, encabeçada pelo bandeirante sorocabano Pascoal Moreira Cabral, no distante 8 de abril de 1719.

Pobre era pobre. A escravidão oficial recebia as bênçãos da Santa Madre.
Índios podiam ser capturados – não eram considerados seres humanos – não passavam de gentios.

Impecável num terno sob medida de S&C, tradicional alfaiataria paulistana, Moreira Cabral se preparava para o momento solene – botar o jamegão no papel.

Ao seu lado, seus embarcadiços. Baixa umidade do ar. Calor imenso. Ameaça de chuva.
Os mosquitos eram infernais. O bandeirante suava muito.

Num desnível do terreno aurífero, Moreira Cabral escorregou. Não foi ao chão, mas o movimento em falso causou constrangimento e apreensão aos que presenciaram a cena.

Do bolso de seu paletó recheado de dinheiro, caiu um maço de notas.

Para evitar comentários maliciosos, o bandeirante disse que a dinheirama era de seu mano querido.

– Oh, meu Deus!, concordaram os presentes porque sabiam a força que o homem tinha.

Um jovem que acompanhava Moreira Cabral lamentou o tropeção que causou o grito sufocado dos participantes.

Condoído, disse a um colega ao lado que o bandeirante sofreu vertigem com o calorão: – "Crima nubrado". O outro sugeriu: – Dá uma toalha azul pra ele.

Alguns anos depois. Blém-blém-blém-blém batia o sino da Igreja Nossa Senhora do Rosário, símbolo do catolicismo, chamando para a missa das 6 horas.

Dono das Lavras em seu entorno, Miguel Sutil estava ocupado e não iria. Fechado em seu quarto com C., seu escravo sexual, tinha mais o que fazer.

C. é a abreviatura do negro que o atendia sexualmente, segundo o escritor Ricardo Guilherme Dickie. Sutil e Dickie não estão mais entre nós.

C. não foi o único negro humilhado ao longo de três séculos, nesse município onde nasceu o herói Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon.

São Benedito, o reverenciado santo dos cuiabanos católicos, foi marginalizado pela branca Santa Madre.

Isso mesmo! Na quase tricentenária Igreja do Rosário, no topo do morrote ao lado do Córrego da Prainha, onde Cuiabá nasceu, não havia espaço para a negritude santificada de Benedito nem de seus devotos.

A solução foi a construção de uma capela ao lado do templo dos senhores.

Mais tarde, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito democratizou-se.

Em seus bancos, nas manhãs das quintas-feiras, a presença do Comendador João Arcanjo Ribeiro era figura obrigatória, até que uma certa Operação Arca de Noé o afastou daquele convívio cristão.

E como não democratizar, se até tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) ela é?
O ouro jorrava e a população amava a Coroa Portuguesa.

Não havia PCdoB nem PSol, nem rasteira política. Todos rezavam pela mesma cartilha ideológica.

Isso acontecia quando a América Latina era feudo dos reis de Espanha e Portugal.

Pouco tempo depois, em 9 de maio de 1748, a Coroa Portuguesa criou a Capitania de Mato Grosso, numa área sob domínio de São Paulo.

O nepotismo luso mostrou sua força e o rei Dom João VI nomeou seu primo e capitão-general, Dom Antônio Rolim de Moura Tavares, para governar o território recém-emancipado.

Assim surgiu o primeiro "grilo" de que se tem notícia no continente.

Mais tarde, essa prática seria bem aperfeiçoada e chegamos ao inusitado da terra em segundo e terceiro andares.

Mato Grosso era um imenso vazio demográfico.

Cuiabá tinha 32 anos e a aventura em busca do ouro empurrava cada vez mais a fronteira Oeste para dentro dos domínios espanhóis, quando Rolim de Moura fundou Vila Bela da Santíssima Trindade, em 19 de março de 1752, para ser capital do naco de terra que o primão lhe dera para governar.

Um primo do rei governando, num palácio construído por mão de obra escrava, numa terra conquistada na esperteza agrária pela fragilidade do Tratado de Tordesilhas, que, por falta de GPS, tinha a utilidade de cobertor nas ensolaradas tardes de Mato Grosso.

Até parece com o agora. Nos anos 1970, no auge do governo militar, o general Dilermando Monteiro, comandante do 2º Exército, mandou nomear seu sobrinho, Frederico Campos, governador.

As nomeações não pararam em Frederico: na mesma década, Garcia Neto, também nomeado (ou biônico, como queiram) governador, nomeou seu genro Rodrigues Palma prefeito de Cuiabá – pouca coisa mudou em 300 anos.

Em 1822, o Brasil conquistou sua Independência, enquanto Cuiabá garimpava em paz.

Em 28 de agosto de 1835, quando Dom Pedro II era imperador, o Império transferiu a sede do Governo para Cuiabá.

Os poderosos do Governo e os togados disseram adeus e pegaram a estrada juntamente com o círculo do poder.

Isso aconteceu logo após a Rusga, movimento que botou em campos opostos quem mamava e aqueles que queriam mamar.

Depois da Rusga, a cidade de Moreira Cabral nunca mais foi a mesma – briga, briga, briga pela mamação.

Vila Bela ficou sozinha com seus negros, muitos sofrendo com o maculo e cuidando de uma certa bandeira verde e amarelo, nas barrancas do Guaporé, junto a Serra de Ricardo Franco, onde, mais tarde, Eliseu Padilha encontrou o verdadeiro caminho das Índias.

Finalmente, veio a Proclamação da República, que teve a tímida participação do cuiabano de Mimoso, Cândido Mariano da Silva Rondon, à época, jovem oficial do Exército e que, mais tarde, diria a célebre frase sobre a relação da sociedade envolvente com os índios: "Morrer se preciso for; matar, nunca".

Veio o horror da guerra com o Paraguai. O Almirantado em Assunção decidiu invadir Cuiabá.

A cidade recorreu a um velho lobo do mar, o ex-mercenário francês Augusto Leverger, a quem entregou sua defesa, enquanto figurões do poder se embrenhavam cerrado adentro, em Chapada dos Guimarães.

Leverger desceu o rio Cuiabá e o desviou num trecho onde hoje é Barão de Melgaço.

Ali instalou canhões que poderiam botar a pique a frota inimiga. Solano López recuou. Temia o comandante mato-grossense.

A defesa de Cuiabá rendeu a Leverger o título de Barão de Melgaço, o nome da cidade onde fez a proeza e da vizinha Santo Antônio de Leverger.

Na capital, empresta seu título para denominar a Academia Mato-grossense de Letras, que reúne a intelectualidade literária mais produtiva daquele quarteirão.

Em Barão de Melgaço, o herói deu o nome de Siá Mariana a uma baia – em homenagem a um de seus rabos de saia.

Veio a guerra contra o Eixo. Filhos de Cuiabá lutaram bravamente no teatro de operações da Itália.

Algumas vezes, entrevistei ex-pracinhas da FEB e, dente eles, Feliciano Moreira da Costa, Ismael Costa Neves e Gabriel de Souza Guimarães, cuiabanos de fibra, que combateram em Monte Castelo e outras frentes contra os nazistas de Adolf Hitler.

Vencido nazismo, o Brasil passou a ser rondado pela União Soviética com seu regime comunista, num cenário caracterizado pela polarização entre Washington e Moscou.

Em 1964, os militares, com apoio de civis, tomaram o poder.

De Cuiabá, partiu a tropa comandada pelo então coronel Meira Mattos, que ocupou o palácio presidencial.
A unidade de Meira Mattos é o 44º Batalhão de Infantaria Motorizado, que se chamava 16º Batalhão de Caçadores.

A população mundial aumentando sem parar e a capacidade de produzir alimentos não acompanhava a crescente demanda.

Mato Grosso entrou em cena com seu cerrado, que virou celeiro de produção de soja, algodão, milho e arroz.

De quebra, passou a transformar proteína vegetal em proteína animal.

Claro que não se produz em Cuiabá, mas é aqui, onde tudo se decide. É aqui que o banco libera o financiamento; que o Governo dita regras ambientais, agrícolas e agrárias; e se estabelecem alíquotas tributárias ou desoneração para produtos do campo.

O ano de 1970 foi o marco temporal para a conquista do cerrado, que começou em Rondonópolis, na Fazenda São Carlos, com o produtor Adão Rigrandino Mariano Salles, pai do ex-governador Rogério Salles.

Em Cuiabá, no ano 1970, nasceu a Universidade Federal de Mato Grosso, criada pelo presidente Médici e o ministro da Educação, Jarbas Passarinho – seu primeiro reitor foi o médico cuiabano e filho do Bugre, Gabriel Novis Neves. 

GRILOS - Os anos 1980 e 1990 foram caracterizados pela indústria do grilo em Cuiabá.

Aconteceu a balbúrdia fundiária, que ainda hoje resulta em milhares de terrenos sem títulos registrados.

A cidade cresce para os lados e para cima. É bonita. Sua população chega a 623 mil habitantes.

Tem o 'crima' tão quente quanto aquele que fez Moreira Cabral tropeçar e o dinheiro cair do bolso de seu paletó. Ainda hoje, dinheirama cai do bolso de paletó, mas por "crima" político.

A cidade é violenta. Parte da classe política resultante da familiocracia tem memória seletiva: critica o regime militar de 1964, mas não se lembra de seus pais e avós que eram filiados à Aliança Renovadora Nacional (Arena) e fiadores políticos dos militares.

Via de regra, esse pessoal está grudado em boas tetas públicas, em Cuiabá e Brasília, conseguidas por razão de consanguinidade.

O trem sonhado por Esperidião Costa Marques, Maria Dimpina e Vicente Vuolo ainda não apita por aqui, mas está vindo.

Saiu de São Paulo e chegou a Rondonópolis, graças ao empresário Olacyr de Moraes, e naquela cidade movimenta o maior terminal de cargas agrícolas do Hemisfério Sul.

Ainda sobre trilhos, desde o final de 2014, a obra do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), previsto para interligar Cuiabá e Várzea Grande, com dois ramais que somam 22 quilômetros, está paralisada.

Depois de marchas e contramarchas sobre o modelo de transporte, finalmente, prevaleceu o BRT, que, quando foi implantado, deverá ser operado por ônibus elétricos.

O céu azul de Cuiabá inspira seus poetas e cantores.

Os corações se embalam ao ritmo de Bruna Viola – nossa menina que ganhou o Grammy Latino -, Roberto Lucialdo, João Eloy, Guapo e do trio Pescuma, Henrique & Claudinho.

A poesia de Silva Freire é imortal e Manoel de Barros sempre encantou a todos com seu artesanato de letras.

A noite sempre é festiva e foi ainda mais, quando João Balão fervilhava a cidade com o Sayonara.

A população trabalha, mas sempre encontra tempo para o humor, que teve seu pico com o inigualável e irreverente Liu Arruda.

A política está na veia da cidade onde nasceram o presidente da República, marechal Eurico Gaspar Dutra, o embaixador Roberto Campos e Dante de Oliveira – o homem das Diretas.

Mas quem deu as cartas por aqui foi o capixaba José Riva, que dominou a Assembleia Legislativa por 20 anos, até cair em desgraça e ser condenado em várias ações.

Riva, nasceu em 1959 e, coincidentemente, na data do aniversário de Cuiabá.

Parte das famílias é bem enraizada em Cuiabá e a miscigenação é visível.

O governador é o goiano Mauro Mendes. O vice-governador é o gaúcho Otaviano Pivetta. O prefeito é o cuiabano Emanuel Pinheiro.

Nas ruas, se ouve o som eclético do tchê com uai, vixe, vôte e o que mais se possa imaginar. É a Cuiabá plural. 

P.S.: – A fundação de Cuiabá foi coberta por um jornalista que viajava com Moreira Cabral.

O colega não registrou o episódio do dinheiro que caiu do paletó, mas a história oral tratou de passa-lo de geração a geração.

Dizem que o bandeirante lhe deu um jabá em ouro pelo silêncio – outros juram que foram esmeraldas garimpadas em Goiás.

Sinceramente, não sei, mas o colega estava bem empenhado em seu silêncio.

Tudo que sei é que a Saúde, agora, está pior do que em 1719, porque a quantidade de cidadãos sem assistência é infinitamente maior.

Também sei que, ao invés de fechar portas, como ontem, dezenas de igrejas as escancaram à espera do dízimo; e que a violência atual não atinge somente negros e índios, como antes, mas todos, indistintamente.

Cidade, berço da minha neta Ana Júlia, onde o sotaque é cantado e tem um linguajar gostoso de se ouvir e que, se Moreira Cabral não a tivesse criado, Deus desceria do céu e a faria brotar nessa abençoada e ensolarada terra.A

Fonte: Diariodecuiaba